domingo, 22 de março de 2015

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos - vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o sono, as drogas e intoxicantes,
são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram estimular.

Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.

O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.

Por arte entende-se tudo que nos delicia
sem que seja nosso - o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência."

Bernardo Soares, no Livro do Desassossego

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