domingo, 8 de dezembro de 2024

Poema de Natal




Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente


Vinicius de Moraes

domingo, 18 de agosto de 2024

O espelho

O espelho apresenta ao viajante sedentário mil reflexões interessantes, mil observações que o tornam um objeto útil e precioso. 

Você, a quem o amor deteve ou ainda detém sob seu império, saiba que é diante de um espelho que ele aguça seus traços e medita suas crueldades; é aí que ele ensaia suas manobras, que estuda seus movimentos, que se prepara de antemão à guerra que pretende declarar; é aí que se exercita nos doces olhares, nas caras e bocas, nos enfados calculados, como um ator se exercita diante de si mesmo antes de se apresentar em público. Sempre imparcial e verdadeiro, o espelho devolve aos olhos do espectador as rosas da juventude e as rugas da idade, sem caluniar nem bajular ninguém. — É o único, entre os conselheiros dos grandes homens, que lhes diz sempre a verdade. 

Essa vantagem me fez desejar a invenção de um espelho moral, diante do qual todos os homens pudessem se enxergar com seus vícios e suas virtudes. Considerei inclusive propor a alguma academia um prêmio por essa descoberta, mas certas reflexões maduras me provaram sua inutilidade. 

Ah, é tão raro que a feiura se reconheça e quebre o espelho! Em vão os espelhos se multiplicam em nosso entorno e refletem com exatidão geométrica a luz e a verdade; porém, no momento em que os raios penetram nossos olhos e nos pintam tal como somos, o amor-próprio se intromete com seu prisma enganador entre nós e nossa imagem e nos apresenta uma divindade. 

E de todos os prismas que já existiram, desde o primeiro que saiu das mãos do imortal Newton, nenhum jamais possuiu uma força de refração tão poderosa e produziu cores tão agradáveis e vibrantes como o prisma do amor-próprio. 

Ora, uma vez que os espelhos comuns anunciam em vão a verdade e que cada um fica satisfeito com a própria imagem; uma vez que eles não podem dar a conhecer aos homens suas imperfeições físicas, para que serviria um espelho moral? Pouca gente deitaria os olhos nele e ninguém se reconheceria ali, — à exceção dos filósofos. — E mesmo nesse caso tenho minhas dúvidas.

Viagem ao redor do meu quarto. Xavier de Maistre. Editora Antofágica.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Deus na escuridão

Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos. 

Deus é exactamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade, mas não sabe o caminho, não sabe por onde os filhos foram, só pode suplicar que não se percam e não se percam da vontade de voltar. Espalha por toda a parte Seus sinais. Avisa contra tudo e cria memórias, para que os filhos se lembrem d’Ele mesmo em lugares onde nunca haviam estado antes e estabeleçam sempre um mapa que os esclareça para fora de qualquer labirinto. 

Deus está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço. E os filhos distraem-se e são incautos ou tornam-se impuros e fogem, atarefados com suas paixões e incertezas, e pensam menos no quanto Deus pode sofrer do que no sofrimento que haverão eles de sentir pela mais pequena contrariedade. Os filhos partem sem saberem que o sentido da vida é chegar à origem. 

Dispersos na paisagem de Deus, os filhos lembram, por vezes, do amor, como é primordial e lhes foi colocado no peito com generosidade. Contudo, os filhos julgam que o amor é o consumo da vida, o imediato que observam, a evidência de se verem acompanhados quando a verdadeira companhia encontra sempre um modo de chegar a casa. Eles partem para mais longe. Os filhos partem para mais longe buscando o que, afinal, tanto ficara lá atrás. 

Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. Qualquer bulício Lhe acelera o coração. Se existem passos em redor de Sua casa, se alguma voz O chama, palpita como doido de alegria na esperança de ter um filho em visita. Deus pisa até de leve, quer tudo em sossego, sem sobressalto, porque sabe apenas estar à espera por tão grande esperança de ser correspondido no amor. Como as mães, Ele arruma Sua casa, tem sempre as camas prontas, alguma fruta na mesa, de onde enxota as moscas barafustando, até indignado, porque aquelas frutas podem ser para oferecer à boca de um filho. E a fome de um filho é prioritária, contra leões e tempestades. 

A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis a qualquer ladrão em troca da oportunidade de, ao menos uma vez, um filho voltar, tomar a chave e entrar, mesmo que a meio da noite, no descanso profundo, entre os sonhos, porque, de todo o modo, o maior sonho possível é esse mesmo, que o filho volte e ocupe sua cama, ocupe seu lugar. Esteja nem que por um instante ali. Para que o veja, o ouça e sinta. E Deus preocupa-se com ver como engordou ou emagreceu, como está a cor em torno das pupilas dos olhos, como entorta a boca ao falar, se os cabelos lhe ficam brancos e caem mais cedo, que ferida traz no ombro, que ferida tem no coração, quem lha fez. E Deus escuta suas queixas e avalia suas mazelas e nunca culpa o filho, mesmo que toda a gente lúcida o fizesse, porque quer que os filhos sejam impunes, justos para que sejam sempre impunes. Sonhou-lhes a justiça e não quer ver mais nada. Ensinou assim. 

Exactamente como as mães, Deus cozinha seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre ou, ao menos, regressarão todos os fins de semana, todos os meses, que não vão ficar separados sem notícias por tanto tempo, porque dói demasiado. Deus confessa que os buscou no escuro. Passando as mãos pelas ruas do mundo, a descer o nariz para buscar seu cheiro, e tantas vezes pode ter feito ruído, por ter entornado algo pelo chão, talvez até por ter partido um canto de vidro. Não era a intenção. Fica ansioso, em certas buscas. Procura sem pressa, mas apressa-se sem noção. Deus, como são as mães, tem a impressão de que vai morrer se não voltar a ver os filhos. Depois, ouve pacientemente o filho a repreendê-lo, porque não devia andar à sua procura, porque não é mais criança, porque se sente demasiado comprometido, vigiado, cansado, ocupado, aflito com assuntos que Deus, como as mães, não haveria de entender ou aceitar. E Deus aceita Sua culpa e procura ser amado acima de toda a Sua precipitação. Está sempre à míngua de ser amado, porque nenhum amor dos filhos Lhe será o bastante. Terá um eterno medo do abandono. 

Se os filhos repararem na casa de Deus, verão como conserva as fotografias expostas por todos os móveis, mesmo as mais velhinhas e descoloradas, a irem embora da luz, sem prata, evaporando. Ele convive com essas imagens e lembra cada instante como se não permitisse que nenhum instante terminasse. As lembranças dos filhos são sempre nascentes e não haverão jamais de terminar. Por causa disso, se Lhe perguntarem, verificam que Deus sabe tudo, lembra aquilo de que ninguém mais lembra. Guarda como um tesouro o passado. Sente tanto orgulho e tanta saudade que nunca deixará de lembrar e de contar a quem se abeirar como foi, como foram, como deverão estar felizes Seus filhos algures. 

Ainda que tenha criado Céu e Terra, ainda que deitasse aos bichos uma infinidade de sentimentos para avanços e recuos, juízo de toda a ordem, inteligência e génio no ofício da sobrevivência e da multiplicação, Deus só entendeu o medo quando criou Seus filhos. Nunca imaginaria. Com o nascimento do primeiro filho comparou a felicidade ao medo. Tão grandes coisas, iguais de tamanho, agora irrevogáveis em Sua bravura de seguir em frente. Irremediáveis. Deus passou a dormir suave. Mais parecido a dormir do que verdadeiramente. E decidiu que o tempo se suspende à distância dos filhos. Vale de muito pouco ou quase nada. Deixa água à Sua cabeceira porque teme morrer de sede. Teme morrer sem acabar Sua tarefa e teme que Sua tarefa termine e O deixem morrer. 

Quando Se levanta, ainda muito cedo, arriscando que as últimas raposas lhe subam às varandas e saltem janelas adentro, Deus deixa as portadas para trás e recebe o primeiro sol, outra vez acreditando que ainda vai acontecer de cada um de Seus filhos e cada uma de Suas filhas dizerem Seu nome inequívoca e alegremente. De pensar nisso, Deus chora e, distraído, chega a cantar. Quem passa perto, bem escuta. Se Ele se dá conta, como as mães, canta ainda mais alto, desimportado de desafinar. 

A casa de Deus precisa de obras porque espera que os filhos venham para ajudar. Tem manchas de humidade nas quais Ele já nem repara. E andam por ali aranhas e até um escaravelho verde pequenino que deve ter vindo numas folhas de alface para a salada, e fustigam os ventos sempre a entortar uma telha ou a fazer tombar as árvores mais infantis. Deus repõe o que pode sem reparar que tudo vai ficando mais velho. Não repara porque a medida de Seus olhos são as memórias. Para Ele, tudo aquilo é feito da muita alegria que lembra, é feito do muito esforço de outrora, e a família ainda reverbera pelos cómodos, ainda é capaz de comer uma fatia de bolo e julgar que em seu redor reparte pelos filhos aquele pouco de açúcar e que toda a gente regozija tão feliz, como se não fossem necessárias outras felicidades, porque, na verdade, nenhuma é maior. Como se não fosse necessário que os filhos cresçam, porque até os filhos, se pudessem, escolheriam estar para sempre naquele instante, em redor de suas mães perfeitas, porque é o amor que aperfeiçoa. É aquilo que se sente que aperfeiçoa, eliminando qualquer capacidade de prestar atenção ao erro ou ao defeito. 

Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de Seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome à boca do filho. 

Cantando por uma manhã, a passarada chilreando para comparar afinações, Deus assume Suas dores. Mas quer apenas entregar alegrias. Quando encontrado, Deus apenas promete a alegria. Tudo o mais é falso. Desdém de quem não quis voltar a casa. De quem se perdeu e envergonhou.

Deus na escuridão. (Cap. 10). Valter Hugo Mae 

Deus como mãe

As mães, intuitivamente, mesmo que por abuso ou obstinação, também ensinam a Deus os seus milagres. Por se tratar de um outro tipo de ciência e um outro tipo de justiça, por ser intrinsecamente bom, Pouquinho respondia e seguia benevolente, carinhoso, meu irmão perfeito. Pouquinho dizia que Deus era como as mães, criava os filhos e deixava-os partir. Passaria, depois, a vida à espera de os rever, como se vivesse na escuridão, afinal incapaz de nos detectar no périplo de nossas decisões e esconderijos. Pouquinho explicava que a oração nos assinalava em seu mapa. Se evocássemos Seu nome Lhe abriríamos os olhos sobre nosso corpo, nosso lugar. E eu aprendera minhas orações e julgava cumprir a melhor promessa. Pouquinho ensinara que não se prometem a Deus sofrimentos nem sacrifícios porque, como as mães, Ele não nos quer ver sofrer. Nunca prometas a Deus o teu sofrimento. Ajuda Seus filhos a reencontrar o caminho para casa. Devemos prometer cantar-Lhe, alimentar-Lhe os filhos, salvar-Lhe os animais, regar as plantas, semear pela terra toda, proteger os livros. Caminhar em visita. Ele dizia: quero que prometas, Felicíssimo. Eu quero que tu prometas que O ajudas, mas que não te provocarás a dor. Quem se vicia na dor desumaniza-s

Deus na escuridão.  Valter Hugo Mae 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Eu atravesso as coisas ―e no meio da travessia não vejo!

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas ―e no meio da travessia não vejo! ―só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?


Grandes Sertões Vereda.  João Guimarães Rosa 

sábado, 20 de janeiro de 2024

O pavão

Eu considerei a glória de um pavão, ostentando o esplendor, de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros,e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Em: Ai de Ti Copacabana! Rubem Braga, Rio de Janeiro, Sabiá: 1969, 5ª edição